Nem a terra, nem o céu,
justamente o meio
Il y a une immense différence entre voir une chose sans le crayon dans la main, et la voir el la dessinant.
__Paul Valéry
UM CONVITE para escrever sobre o trabalho de um artista é sempre um desafio em dois tempos: o primeiro é a quase automática recusa, considerando que obras de arte não precisam de textos para ser; segundo que, se há de escrever sobre – e esse precisar é da ordem do desejo e das necessidades do sistema de artes –, o que escrever, evitando uma enfiada de obviedades ou, pior, um rol de coisas ao redor da obra, que nada lhe acrescenta, nem ajuda o observador?
O que dizer a um artista quando entramos em seu ateliê? Somente "vim ver o seu trabalho"? É uma temeridade para ambos, para o artista e para o crítico, pois o exercício de ver exige um preparo em, no mínimo, três níveis: o perceptual, o intelectual e o emocional. É preciso estar aberto para olhar, que é diferente do ver, que é abrangente, mas geralmente mecânico e superficial; é necessário estar predisposto a imergir no universo do criador, prenhe de possibilidades e indagações e, finalmente, é preciso ainda estar com a sensibilidade ativada, pois aqui o sentir é diferente daquele que praticamos no ofício diário de ver exposições, quando estamos alertas e frios, preparados para olhar, para operar as equações necessárias, para compreender e, finalmente, para tirar conclusões.
A primeira impressão frente a esse conjunto de obras é a de que estamos vendo desenhos. Digo isso porque a primeira imagem que vem à mente é a de um criador com seu pensamento gráfico em plena operação. Digo também porque conheço a artista, porque sei que ela é professora (nunca se deixa de ser professor, mesmo na aposentadoria; é antes um estado de ser do que uma profissão), porque percebo de imediato todos os indícios da metodologia rigorosa e sistemática ao olhar os trabalhos. Mariza Carpes é uma artista na plenitude, pois nela convive o domínio técnico do ofício, uma bem sucedida carreira, sua vasta e palpitante vivência como professora de desenho e ainda a experiência como administradora e gestora cultural. Essa professora é uma artista.
A ANÁLISE do processo de criação, a partir dos vestígios percebidos nas obras prontas, indica um modelo de prática rigorosamente sistemática: as camadas superpostas dos trabalhos deixam entrever todas as etapas da criação: o desejo, o projeto, os croquis, os estudos, a obra. Um levantamento dos procedimentos utilizados nos fornece uma lista generosa de recursos: as colagens, a costura, os alinhavados, o desenho, a pintura. Em cada um desses recursos, evidencia-se um embate entre os vestígios daquele desejo fundador, os dados da memória, o exercício continuado do sensível e a prática do fazer. Tão ampla quanto a lista de procedimentos, é a dos materiais utilizados: tela, papel, tecido, madeira, ferro, vidro, grafite, lápis, pastel, carvão, linha, cera para encáustica, muitas coisas achadas e outras tantas procuradas. A matéria com que são feitos os sonhos da artista tem tanta coesão e coerência que se torna difícil enxergá-la: vemos o todo da obra, vemos o desenho, vemos, quando muito, o todo da informação pretendida. O proceder por camadas, operando as justaposições, as sobreposições e o acúmulo, exige um adestramento do olhar. A manualidade, assim como o domínio do artesanato, é evidente; o que importa no final é a fatura que transforma as individualidades dos materiais em matéria de memória.
Pelos deuses, as claras dançarinas! Que viva e graciosa introdução aos mais perfeitos pensamentos! Suas mãos falam, e seus pés parecem que escrevem. Que precisão nesses seres que se dedicam a usar tão bem suas forças tenras! Aqui a certeza é um jogo; dir-se-ia que o conhecimento encontrou seu ato, e que a inteligência de imediato consente às graças espontâneas…
__Paul Valéry
À QUESTÃO posta, informou a artista que o seu ponto de partida foi a dança, melhor ainda, o movimento, aquilo que faz a dança, isto é, o imaterial fazendo-se no tempo e espaço. Essa dança não está representada nos trabalhos expostos. Ela apresenta-se em potência, desdobrada nas diversas figuras que ocupam a superfície dos suportes, nos vãos entre elas, nos inúmeros elementos que ajudam a ocupar o espaço. Não é uma descrição da dança, tampouco sua representação; é a dança enquanto acontecimento temporal: a ambição é a de torná-la visível através daquilo que ela imprimiu na sensibilidade do espectador, no nosso caso, a artista. Os desenhos aqui representados têm algumas qualidades distintivas que merecem ser destacadas: a relação entre as figuras e os fundos dos diversos trabalhos se dá num processo de evolução esquemática. Não há a pretensão de reproduzir as formas dos corpos e dos objetos, apenas configurá-los, deixá-los passíveis de serem reconhecidos, mas não identificados. A evolução se dá do esquemático ou configurado. Segundo Rudolf Arnheim, a percepção começa com a captação dos aspectos estruturais mais evidentes, deixando ao observador o trabalho de enquadrar o esquema enquanto forma, enquanto simulacro do real. Assim é que não há figuras nesses desenhos; a artista recorre àquelas formas sintéticas de configuração do corpo humano, tais como perfis e silhuetas. Antes manequins; depois, no observador, figuras? O outro aspecto distintivo desses trabalhos ocorre na dualidade entre representação e apresentação. A opção da artista é pela apresentação das matérias ao invés da representação das coisas. Trata-se, numa redução extrema, do mesmo processo de colagem dos modernistas: por que representar se podemos apresentar? Assim, a matéria dos sonhos permanece coisa do mundo material enquanto simula coisas do mundo ideal. Mais um aspecto distintivo é o do uso da cor: qual cor? Não percebemos de imediato as cores desses trabalhos: elas são pouco significantes, porque não agregam valores sensoriais. A bicromia desses desenhos, ora azuis, ora terrosos, simbolicamente figura o campo da ação desses trabalhos: nem celestes, pois não vão às esferas metafísicas, nem terrenos, pois não se detêm na simulação do real; são humanos, a justa medida entre o céu e a terra. Falam de coisas apreendidas pelos sentidos e compreendidas pela sensibilidade. Sintetizando, podemos dizer que esses desenhos são da ordem da apresentação, e não da representação.
O DESENHO foi o mote inicial desse texto: ao iniciarmos, falávamos de pensamento gráfico. Agora é necessário opor essa ideia a de um pensamento pictórico. A obra aqui analisada tem ambas as características: vale-se de recursos lineares para a configuração das formas e se vale de recursos pictóricos para a representação da densidade da matéria. Esse pensamento que nomeamos de gráfico é uma característica geracional: depois de décadas em que o desenho foi o exercício para o aprendizado da simulação do real e, após, a base sobre a qual se assentava a encarnação das formas através das tintas, na geração de Mariza Carpes ocorre o processo de independência do desenho enquanto técnica. Resultado da consciência de sua auto-suficiência enquanto técnica e de sua potência expressiva, associou-se a isso a revelação de que ele também podia ser tão nominativo quanto a pintura. A revelação do desenho enquanto um meio e também um fim para nominar as questões materiais e filosóficas do mundo tornou seus praticantes verdadeiros neófitos. Não importava qual tema, qual assunto, quais recursos materiais, qual a sua destinação: o desenho servia a tudo e a todos com igual eficiência e qualidade. Assim, toda uma geração tornou-se desenhista, posto que a técnica não era somente um meio, mas um fim em si mesmo: desenhava-se para ver, para apreender, para conhecer, para descobrir, e para revelar. Não é por acaso que o desenho pautou a formação artística de inúmeras gerações de artistas nas nossas escolas: ele era o campo aberto para experiências e experimentações que estavam interditos a pintura, cheia de regras, técnicas e impedimentos históricos; interditos também para a gravura, que exigia um rigoroso e quase monástico processo de iniciação; igualmente para a escultura, soterrada na tradição monumental, assim como para a cerâmica, presa no dilema entre o utilitário e a difícil autonomia enquanto escultura. Assim foi que o desenho tornou-se o campo aberto dos afetos: as aulas de desenho eram momentos de trocas de informações, de intercâmbios de sensibilidades, de espaços de experimentação.
O desenho permitiu a Mariza Carpes a configuração da dança, mas também possibilitou a descrição do movimento e o mapeamento do entorno. Sobre o desenho já escrevi que temos a tradição, seguindo a norma renascentista, do disegno, literalmente o desígnio, a intenção da representação gráfica, que tem seu equivalente no termo inglês design, que é a perspectiva da representação dos objetos da existência humana. Mas não estamos limitados somente ao disegno e ao design, temos também o to draw ou o to draft dos ingleses, o risco ou o traçado, a representação gráfica pura, o abandono da tirania da representação das figuras na busca de uma feição externa com qualidades próprias, concreta e puramente plásticas.
SE À INDAGAÇÃO sobre qual era o seu ponto de partida a artista respondeu que era a dança, achamos que ela também deverá estar no fim buscado. Assim, entre a dança e o seu movimento, entre a representação e a apresentação, entre o desejar e o fazer, temos nessa extensa série de trabalhos o desenho como obra. O desenho como estratégia (usando esse termo de origem militar, tão caro aos nossos melhores desenhistas), ou seja, a arte de aplicar com eficácia os recursos de que se dispõe, visando ao alcance de determinados objetivos: nem a terra, nem o céu, justamente o meio.