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"A menina em 1920": este é o nome da obra, cuja imagem foi generosamente cedida para a capa deste livro, e ela tem uma história, ou muitas. Tem uma pré-história que ignoramos: eu, autora do livro aberto por ela; Mariza Carpes, artista que encontrou, em uma viagem a Nova York  – terra estrangeira –, a foto que foi tirada justamente em 1920. Da data da foto até o encontro de Mariza com ela, 70 anos se passaram. Do encontro com a foto até o momento em que a retrabalhou – já de volta à sua terra- natal –, mais 27 anos se seguiram. No correr de todo esse tempo, um século de gerações de meninas, de jovens e de mulheres teve suas histórias registradas em fotos, em quadros, em arte, em escrita e, certamente, no interior de cada uma.

 

"Digo de onde venho" é o nome da exposição em que conheci esse trabalho. Na exposição de nome tão rico de significado, Mariza Carpes compartilha muito: quadros, peças, desenhos, assemblagens, montagens, fotos e vídeos de suas histórias e, nelas, um tanto da história de sua mãe e da história que elas compartilharam, um tanto perto, outro tanto longe, a uma distância em que a filha pequena sentava-se e observava o universo em que a mãe transitava por entre máquinas de costuras, manequins, moldes, carretéis de linhas, botões.

Sua história com essa mãe que foi costureira encontra a minha história com minha mãe que também foi costureira, uma feliz coincidência. A partir delas, vamos nós dando conta e dando ponto e vamos, como nossas mães, juntando um ponto e outro: Mariza em suas obras, eu em minha escrita. Vamos unindo, ligando e compondo, descompondo, recompondo e recontando. Veste, investe, desinveste, reinveste e desveste, desnuda: a nossa alma e a do outro.

Quando pequenas, olhávamos; hoje, mostramos e damo-nos a ver, a olhar. Então, olhando hoje a obra de Mariza, para além da primeira imagem da menina pequena que posa para a foto, nosso olhar vai aos poucos enxergando outras composições: no interior de seu corpo, ela carrega outra menina e dois vultos, seus antepassados, seus passados e os passados de tantas outras mulheres que habitam cada uma de nós e, por vezes, nos prendem como o grampo de cabelo também presente na cena.

 

É disto que trata o livro: dos encontros entre mães e filhas, porém, não o mais amoroso encontro, pelo contrário; trata-se de encontros mortíferos – na verdade, da impossibilidade de um encontro de fato – entre uma mãe que tem o olhar voltado para si mesma e uma filha sem poder, por isso, contar sua história em primeira pessoa.

 

Obrigada, Mariza, por tua história contada e mostrada, (re)encontrada e (re)trabalhada com tua mãe, com tua arte, com esta foto, com esta obra. Obrigada por este presente e por nosso encontro.

Digo agora para onde vou.  

_______ Ana Cláudia Santos Meira

In: MEIRA, Ana Cláudia Santos. Histórias de captura: investimentos mortíferos nas relações mãe e filha.

São Paulo: Blucher, 2021. [Argumento de capa.p. 7-8]

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