Para Mariza Carpes, palavras...
Quando fiquei sabendo que Mariza haveria de pintar um retrato meu, fui correndo saber um pouquinho mais sobre sua vasta obra, sobre seu passado, suas histórias... E qual não foi a minha supresa ao descobrir que boa parte da obra mais recente de Mariza atravessava o universo da costura; que ela tinha uma mãe, costureira de mão cheia, que, com sua Singer, fizera os mais lindos vestidos, marcando com linhas e agulhas as vidas de tanta gente.
Assim como minha avó.
Pois Anna Wierzchowska, minha avó materna, sustentara seu primogênito durante toda a Segunda Guerra pedalando a sua máquina Singer quando meu avô polonês estava na Europa conflagrada, lutando por sua pátria e sua família.
Estes talentos da minha avó, a coragem e o jeito para o “fazer com as mãos”, passaram – sangue não é água – depois para minha mãe, Irena.
E, depois, para mim.
Os filhos dos filhos dos filhos verão, diz a música.
Digo eu que comecei a vida costurando, porque tinha tantas ideias que o tecido e a linha me pareciam mesmo a forma mais fácil e rápida de dar-lhes vida... Foi só depois, quase por acaso, um dia após meu trabalho na confecção que havia montado ainda bem jovem, que comecei a escrever.
Como um passatempo, numa tarde perdida em antigos calendários, coloquei palavras num papel, deixando a máquina descansar do trabalho cotidiano. Na falta de um livro para ler enquanto esperava uma cliente da confecção, iniciei um romance...
Foi um susto, uma epifania.
Mas, depois daquele dia, nunca mais parei.
O tempo passou e vieram tantos livros... Mas nunca deixei as linhas e agulhas de lado. Nascidos os filhos, para eles tricotei e costurei com amor, contando-lhes histórias com cores, assim como as contava com palavras nos meus romances, onde histórias eram tecidas e tramadas como fios, enredos iam e vinham em ziguezague como a agulha no tecido sob o jugo da máquina, e narradores atribuiam cores e linhas aos personagens de uma história...
Porque toda arte é uma metáfora da vida.
E toda vida é uma trama de coincidências que, na verdade, são muito mais do que apenas isso – coincidências.
E, assim, volto ao dia em que vi, na belíssima obra de Mariza Carpes, as suas telas repletas de manequins, carreteis, linhas e agulhas. Como a minha obra, a minha vida e o meu passado também o eram.
Não, eu desacredito das coincidências... Prefiro os poemas, que explicam o mistério sem querer desvendá-lo. E, como disse Sophia de Mello Breyner Andresen, como o mar dentro de um búzio, o divino sussura no universo.
Sim, o divino sussura aos ouvidos atentos.
E foi um sussurro destes que trouxe as tintas de Mariza para a minha vida.
Eu, cercada de livros, também de quadros, mas nunca retratada por um artista com seus pincéis. Eu, que já fui pintora num romance (pois nós, escritores, somos todos aqueles que também criamos), mas nunca fora pintada por alguém. Eu que, de certo modo, costurava palavras no papel. Que, de certo modo também, pintava com palavras, como diz Orhan Pamuk quando fala da ficção.
E assim, enquanto descobria Mariza, ela também me descobria.
Ou, pelo menos, intuia-me.
Porque me fez solar, porque me fez caminho, porque me fez jardim e me fez bordado, costurando-me de tintas numa tela que, para todo sempre, vai me sussurrar as palavras certas sobre o ombro enquanto crio meus personagens e suas histórias.
Porque me fez caminho…
Sim, caminho entre nossos olhares, entre duas máquinas Singers e duas mulheres fortes e inesquecíveis, a mãe de Mariza, Ivone, e a minha avó, Anna. Caminho e portal entre tinta e palavra, entre o tempo que passou, mas que um dia voltará, e este agora que nos cerca, e que haverá também de partir nesta ciranda eterna que nós, artistas, tentamos desde sempre incansável e desesperadamente guardar, segurando a areia do tempo em nossas próprias e inquietas mãos.
Obrigada, Mariza.