A Menina e o Mar de Mariza Carpes
O Desenho foi a primeira das Artes, ou ao menos, uma das primeiríssimas artes do Mundo, juntamente com a arte têxtil e a arte da cerâmica.
A maioria dos leitores deve guardar na memória, ao menos vagamente, imagens da Época Pré-histórica – 15.000 anos atrás – quando os humanos só dispunham de instrumentos precários (pontas de sílex) para gravar seus desenhos no único suporte que lhes estava à mão, a rocha. Como legado deles sobreviveram os Touros de Altamira e os Bisontes de Lascaux.
Surge uma questão: por que ainda hoje apreciamos tais registros paleontológicos na sua condição de “obras de arte”?
Dou aos leitores um testemunho pessoal: nosso grande romancista, Érico Veríssimo tinha particular apreço pela Arte Pré-histórica. Muitas vezes conversei com ele a esse respeito. A razão, pela qual valorizamos esteticamente tais desenhos, é fácil de dizer – embora seja difícil de explicar.
No fim do século XIX e inícios do século XX, os artistas ocidentais, cansados de produzirem temas e estilos, que com o passar do tempo se sofisticaram, desejaram, por assim dizer, partir do aparente zero da Pré-História. Resolveram valorizar os pontos iniciais da Arte, compreendido sob a denominação de Primitivismo, tornando a percorrer uma espécie de caminho inédito. Daí seu interesse pelos desenhos do Paleolítico e do Neolítico. Entre esses artistas, mencionam-se, de modo especial Henri Matisse e Constantin Brancusi.
O que chama a atenção neles é terem produzido desenhos sugestivos capazes de provocarem em nós, a emoção que produz a representação da agilidade animal e da volumetria dos corpos robustos dos animais, que eram caçados pelos homens de Cro-Magnon.
Eis porque é possível comparar os artistas pré-históricos aos artistas de nossa sociedade audiovisual, que retêm centenas de imagens em seus celulares, e as utilizam para suas criações. Nós, também, num mundo grandemente visual, apreciamos a presencialidade reproduzida, principalmente quando ela é transformada, deformada, surrealizada. As pessoas sentem prazer em nos apresentar fotografias de seus familiares. A publicidade, por sua vez, produz imagens de todos os tipos, algumas estranhamente originais.
A partir de tais pressupostos, podemos comentar aspectos da produção artística de Mariza Carpes.
O que primeiramente me impressionou em seus desenhos foi sua temática. Ela é muito pessoal. Mariza empenha-se em recuperar sua condição de menina. E a faz com desenvolta displicência, utilizando brevíssimos traços. Brevíssimos? Sim. Tente o leitor imitá-la... Verá que os desenhos de Mariza não são traços fáceis de compor. São traços cuidadosamente imaginados. O grande poeta inglês, Wordsworth, certa vez, definiu a Poesia como “uma emoção revivida na tranquilidade”. Mariza, também, revive sua emotividade infantil na tranquilidade. No entanto, se fosse só isso, talvez ela não conseguisse interessar ou comover tantas pessoas. É impossível existir arte onde não existe uma emoção original e diferenciada. São as emoções diferenciadas de Mariza que despertam a sensibilidade dos que conhecem sua produção artística, e a apreciam.
Aliás, a sensibilidade que Mariza suscita, não é só a sensibilidade estética, mas também a sensibilidade humana, em geral. Os desenhos de Mariza proporcionam-me uma sorte de ternura. Ao verem seus desenhos, meus olhos se despem de milhares de imagens caleidoscópicas, mais divertidas que úteis, e me convidam a olhar com atenção, a meninazinha interiorana que aparece diante de mim. Essa menina vê, pela primeira vez, o mar. Mariza consegue apresentar a menina, às vezes, sem mostrar seu corpo, apenas desenhando-lhe as perninhas frágeis. O que Mariza quer é que o espectador descubra que ela – a menininha de outrora! – estava, diante do mar, descobrindo um Continente, semelhante ao Continente que Cristóvão Colombo descobriu. Toda criança, sem que o percebamos, é uma Descobridora.
A artista, porém, vai além disso: volta-se sobre si mesma, sobre seu interior, sobre seu mundo de mulher vivida, e tenta ver nesse mundo pessoal o que resiste às invasões de privacidade, e às distorções que o ritmo frenético da vida social causa na visão das pessoas. Com uma espécie de candura, repesca lembranças de Brinquedos e de Objetos que a fascinaram, objetos todos exteriores, a maioria deles saídos das mãos de artesãos domésticos, ou então, fabricados em série. Com delicadeza, ela procura o que eles ainda (num mundo complicadíssimo como o nosso) sugerem de onírico, de “sonho lúcido”, esforçando-se por atribuir-lhes outro significado, até mesmo um novo simbolismo.
Muitos leitores talvez ignorem que Clarice Lispector, a genial escritora brasileira, no auge de sua vida e de sua fama, comprou para si uma boneca. Benjamin Moser, seu biógrafo, transcreve trechos de uma confidência da escritora:
- (...) comprei uma boneca para mim. Para dormir comigo. Não tenho senão um pouco de vergonha. Mas em menina eu queria ter uma boneca bonita. (...) Eu tinha tanto amor para dar. E agora o meu amor ficou tão grande que se tornou compulsivo. Ela é linda. Já a beijei e abracei. (...) Chama-se Laura”. (Clarice, uma biografia. São Paulo, Companhia das Letras, 2017. p. 402).
Sentimentalidade? Prefiro empregar aqui a palavra: Humanidade! O próprio Jesus declarou: “Se não vos fizerdes como as crianças, não entrareis no Reino dos Céus” (Evangelho de Mateus, 18,3).
Como não admirar uma criação artística de Mariza, como a Mesa dos Cristais Partidos (Trauma, 2019), na qual ela recolheu o que sobrou de sua cristaleira “vandalizada” por um passarinho que lá entrou, e ocasionou uma destruição de peças tão preciosas? O resultado estético que Mariza conseguiu mediante sua imaginação é cativante. Os “cacos” de cristal na sua mesa evocam formações naturais, e exibem uma sub-existência objetual, que os torna “criações visuais”.
Aprecio, igualmente, outra fase criativa de Mariza, sua série de desenhos subordinados ao título originalíssimo de “Digo de onde venho”. Minha admiração pela artista induz-me a insistir na qualidade artística de seus desenhos.
Dizem que Mirò aprendeu a desenhar com a mão esquerda para melhor expressar seus sentimentos estéticos não codificados. O que acontece, em nosso mundo super-tecnológico, rico sem dúvida em possibilidades, é que, as pessoas quase não desenham, “são desenhadas” pelos instrumentos que manipulam. Nada a objetar em relação às novas possibilidades proporcionadas pelos instrumentos que a Informática põe à disposição dos artistas.
Todavia, Mariza pretende o inverso: quer que a mão – cujo elogio já foi feito brilhantemente por um teórico francês – seja mais criativa do que tem sido, e explore aspectos que o desenho tradicional ainda não realizou. Sob certo sentido, ela se propõe reaprender a desenhar, não de acordo com a visualidade retiniana, mas com a visualidade de seu aparelho criador, o de suas memórias, e até o de seus sonhos. Portanto, quem quiser apreciar os desenhos de Mariza deve dispor-se a ser um “iniciado” na sua proposta artística.
Condenso numa frase a intenção de Mariza: ela poetiza a expressão visual. Ou seja, ela deseja que seus desenhos evoquem realidades psíquicas como as saudades, que estão associadas a uma emoção de perda, que tem um sabor agridoce, porque, ao mesmo tempo, aludem a algo alegre da realidade, que se tornou triste, pelo fato de não poderem ser permanentes.
É lógico que, o que caracteriza seus desenhos no sentido estritamente artístico, é a sintetização visual, a capacidade que Mariza possui de atingir a “nudez visual”. Em que consistiria essa capacidade? Numa redução figurativa dos elementos óticos, considerados acessórios. A artista acaba por obrigar o espectador a abandonar a visualidade do lugar-comum, em favor de uma visualidade concentrada, na qual as aparências se mostram quase tangíveis. Isto se vê, exemplarmente, num grande painel de sua autoria, no qual a figura de uma Menina se apresenta, mais como um Signo da Infância, do que como uma figuração realista. É isso que eu entendo por “desenho imaginado”: um desenho no qual a imaginação se incumbe de mostrar aos olhos o que realmente importa na visão que a artista privilegia.
A Menina do painel (A menina e o mar, 2017–2019), de certo modo, associa ao seu silêncio verbal, um novo silêncio: o de sua figura excluída do burburinho da vida cotidiana. A sua existência estética. Nesse desenho Mariza atinge uma singeleza requintada, que o tratamento cromático denso e escuro valoriza. Vê-se nesta figura, além do pasmo de uma criança diante do mar, a sua solidão de criança, que normalmente tendemos a esquecer.
À luz do que acabo de escrever, sinto prazer em dedicar à Mariza o terceto final de um soneto de Camões:
Ah! deixem-me enganar, que eu sou contente;
que, posto que maior meu dano seja,
fica-me a glória do que imagino.
Antes de tudo, apreciemos o magnífico elogio que Camões faz à toda criação artística! A tudo que alguma vez foi criativamente imaginado no Mundo!
Não obstante, em nosso mundo contemporâneo, é preciso também enfatizar, além do cuidado com a infância, também a vivência psicológica e sociológica da infância, não suficientemente valorizada na sociedade em que vivemos.
Se não podemos, ou não temos a coragem de ser felizes, tentemos, ao menos, fazer felizes as crianças em nossa imaginação. Elas o merecem!