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Dizer de onde viemos

A memória é matéria fértil, porosa, maleável, esquiva, fluida. Com ela se constroem catedrais de vidro, epopeias instáveis, jardins movediços. É com essa massa densa e fugidia que Mariza Carpes molda sua obra. Inaugurada em dezembro de 2019, a grande exposição celebrando os 45 anos de produção da artista convidava o visitante a passear por seu infinito particular e evanescente. Se a viagem a princípio seria pelas fragmentadas lembranças de Mariza reverberadas em arte, a proposição em verdade transbordava: era impossível não mergulhar nas próprias águas turvas pretéritas quando se circulava pelas cerca de 60 obras dispostas em uma expografia de evocação cinematográfica e dramática. Por mais que a conjuração teatral de Mariza CarpesDigo de onde venho fosse pessoal, remexer na gaveta dos guardados nos tocava a todos.

 

Mariza é prima da minha mãe. Nossos laços primeiros, portanto, não estão conectados à arte e estão registrados em desbotadas fotos de encontros familiares, remotas recordações trincadas e histórias do passado eventualmente divididas à mesa. Lembro de quando ia a Santa Maria na infância da tia Ivone, senhora bonita e vaidosa, sempre elegante, ao lado do tio Byron, tipo brincalhão e boa-praça, sorriso permanentemente aberto. Casal vistoso, que recebia meus pais todas as vezes que eles iam visitar a parentela no interior – a passagem na casa dos pais da Mariza, me relatam, era obrigatória, uma tradicional parada antes do almoço, lá pelas 11h, para aperitivar um uisquinho. “Índio velho!”, saudava efusivo tio Byron a qualquer sujeito – o cumprimento valia até para um pirralho como eu, do alto dos meus 12 anos.

 

Um túnel do tempo foi montado na galeria e nas salas do piso superior do Margs, espaços por onde a retrospectiva se espraiou. Com criatividade e sensibilidade, Mariza Carpes e a curadora Paula Ramos construíram uma narrativa de afetos e fantasmas, que ecoou épocas mais calorosas e duras e inventariou um legado familiar de alegrias e dores – com especial destaque para o elo estreito da artista com tia Ivone, essa modista talentosa que certamente transferiu à filha o dom da criação. Fui tragado por esse vórtice de reminiscências – mas acho que não necessariamente por causa da minha tênue ligação casual com algumas das referências, imagens e índices ali expostos: não é preciso partilhar uma história comum com a autora para permitir que seus retratos esboçados, cristais estilhaçados e avios de costura rotos toquem alguma primitiva corda adormecida dentro de nós.

 

A riqueza dessa arqueologia pessoal, apresentada em desenhos, assemblages e vídeos – e que por si só já atestam a qualidade singular dessa obra –, talvez não tenha sido o principal mérito dessa antológica exposição monográfica de Mariza Carpes. Quem sabe o grande valor de Digo de onde venho estivesse justamente em sua capacidade de extrapolar o sujeito, o lugar e a especificidade de seu título assertivo: a artista transcende a autobiografia ao fazer de seu trabalho a materialização de um discurso poético que não fala exclusivamente de si, cuja voz cala também em nós e diz de onde viemos.

_______ Roger Lerina / jornalista cultural

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