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Percurso na construção

de uma poética intimista

Mariza e eu somos amigas! Mais que amigas!!! Quase irmãs! Começar um texto com uma frase assim pode parecer um clichê. Mas é esta frase que resume os encontros de toda uma vida: nós somos amigas.

 

Nos conhecemos em 1979, quando juntamente com Lucia Isaía e Sandra Knackfuss, elas realizaram uma exposição coletiva no Centro Cultural de Alegrete, RS. Parecia ser um encontro casual, mas aquele encontro foi tão importante que nós nos tornamos “amigas de infância”. Como se fossemos conhecidas desde sempre e, nas conversas posteriores, encontramos imensas coincidências nos acontecimentos de nossas vidas, o que nos tornou, de fato, essas “amigas de infância” cheias de histórias e cumplicidades. E com o amigo de infância é assim. O tempo não conta. O amigo se reencontra e continua o assunto de muito tempo atrás, como se não tivesse havido um intervalo temporal e espacial. O amor do amigo está lá, desde sempre, porque ele nunca é datado.

 

Em 1984, como Membro do Conselho de Cultura do Município de Alegrete, organizei nesta cidade, uma exposição da Mariza, com seus desenhos fortes e expressivos. Figuras humanas com as mãos atadas a denunciar ou a revelar limites impostos pelas circunstâncias da vida. Na sua vida e na de todos nós. Comprei um e foi o primeiro trabalho dela que entrou na minha casa. Hoje tenho vários!!!

 

Nos reencontramos, anos mais tarde, numa noite muito fria, em uma sessão de cinema da Casa de Cultura Mario Quintana, inaugurada não havia muito, e ficamos conversando longo tempo, de pé, sob um gélido vento que subia do Guaíba, sem atinarmos de nos proteger para tomar um café quentinho no último andar da Casa, identificadas pelos nossos recentes divórcios e perdidas como costumam estar as mulheres após longas relações. Assim, aquele encontro e a conversa que, na verdade, nunca mais cessou foi um abrir de novas possibilidades e o indicativo de que nunca estamos sós nas nossas vivências, por mais doloridas que sejam.

 

Vivemos perto e muito longe, por diversas vezes: ela, nos Estados Unidos, eu, em Portugal, depois nos reencontramos em Porto Alegre e, por fim, foi minha vez de ir embora, e agora, juntas na mesma cidade.

 

Mas o interesse pela arte foi o que alinhavou mais ainda nossa amizade. Tanto que, em 2007, fomos fazer o famoso circuito coincidente das artes, que acontece a cada 10 anos na Europa, com a Bienal de Veneza, a Documenta de Kassel e os jardins de Esculturas em Münster. Itália e Alemanha. Vimos muitas coisas, caminhamos muito, à noite, líamos sobre o que tínhamos visto, vivemos muitas e divertidas trapalhadas. Também conversamos muito, pois tanto Veneza como Kassel, com as falhas e equívocos que possam ter, ainda são os melhores lugares para tomar a pulsação da arte de nosso tempo.  Prometemos repetir a façanha, mas a vida tomou outro curso.

 

Estar escrevendo sobre o trabalho de Mariza enche-me de orgulho. Em 2012, Mariza fez uma exposição chamada “Nem a terra, nem o céu, justamente o meio”. Esta exposição começou em Santa Maria, depois foi para a Usina do Gasômetro em Porto Alegre e, no ano seguinte, foi apresentada em Caxias do Sul. Naquele momento, escrevi um texto do qual incluo algumas partes aqui.

 

Para mim, falar da arte de Mariza significa falar de IMAGENS e falar em FEMININO. As invisíveis imagens do feminino. Porque de sua arte emana feminilidade. Todos os fragmentos que ela guardou e colecionou ao longo de sua vida tem a ver com o universo das mulheres: véus de noiva, meias de seda, máquina de costura, lenços e pedaços de linhos bordados, objetos de cozinha, bibelôs de porcelana, toalhas de mesa antigas, pedaços de louças, bonecas, vasos de cristal, alfinetes de chapéus... E é daí que surgem as suas obras.

 

Em muitas, ela faz desaparecer a tridimensionalidade do objeto. Transforma-o em vestígio, traço, linha, mancha, superfície. Cria uma IMAGEM. Imagem que prende o olhar, mas que não revela tudo, uma vez que é essa a característica da imagem que, a ser criada liberta o olhar,  fazendo aparecer as condições de invisibilidade próprias da imagem. Nesta, o objeto anula-se como tal, para dar a ver um espaço-tempo que permite aparecer uma coisa outra.

 

A essência do objeto é uma: uma matéria que ocupa um espaço e que pode pertencer a um tempo qualquer. A essência da imagem é outra: é criada para fazer aparecer o irrepresentável, ou seja, aquilo que está por trás dela e aquilo que lhe dá origem. Faz “aparecer” o que de Real há.

 

Mariza age tal como a filha do oleiro Butates de Sício, relatado por Plínio, o Velho no livro XXXV da História Natural. Ao saber que o amado partiria e antecipando a sua ausência, a filha do oleiro contorna a sombra da cabeça do amado numa parede. E assim surge o ato fundador do desenho.

Esse relato, sendo uma lenda, contém uma verossimilhança histórica porque obedece a uma veracidade simbólica, uma vez que a ausência é a condição do surgimento da imagem. Aquilo que está desaparecendo é transformado ativamente num aparecimento – mas é um outro aparecimento. É um “reaparecimento” simbólico.

 

Assim como a filha de Butates, submetendo-se à interdição de não ver mais o amado, desenha-o para poder continuar a vê-lo sob a forma luminosa de uma imagem, os objetos do universo de Mariza são transformados em imagens para continuarem sendo vistos “para sempre”. Esse “para sempre” é a sombra sobrevivente do que ela amou e adquire a imortalidade própria de quem produz obras de arte. 

 

E é aí que está a força de sua obra: mostra o que se deixa ver e o que se propõe invisivelmente ao olhar. Isto cria no espectador um reconhecimento, mas também uma desorientação espaço-temporal.  Porque o espectador vê o que está exposto. Mas ele nada sabe sobre aquilo. Então, o que surge é um furo, um vazio, uma espécie de umbigo, através do qual um enigma surge: é um não-saber que se comunica com o que está sendo visto e que permite passar ― tal qual Alice ― para o outro lado do espelho, numa quarta dimensão, que é a dimensão que o espaço adquire quando gerado pelo tempo.

 

Como no furo do espelho de Alice, essa outra e espantosa dimensão que o observador atravessa é a de perceber o que ex-sistiu, uma menina encantada com os objetos e com o universo que a rodeia. É o aparecimento de um começo sem tempo, de algo esquecido e inesquecível ao mesmo tempo, que vem numa descontinuidade temporal, mas que, através dela, o espectador fica autorizado a fazer suas associações e conseguir vislumbrar a dimensão pessoal, íntima e secreta da artista. Engendrando, assim, um tempo histórico que não será mais o das memórias, mas sim, o próprio tempo da artista.

 

O processo de transformar objetos amados em imagens artísticas, operado por Mariza, por Sublimação, propicia o entrelaçamento do seu próprio desejo com o que a formatou, revelando no ato criador, a estrutura poética na qual a obra de Mariza se insere.

_______ Bernardete Conte

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